(Ante scriptum: resolvi dividir o tópico vendidagem em posts separados. Este tratará da evolução do conceito de vendido desde sua concepção até a visão que temos hoje da matéria. O próximo post será mais analítico, falando dos inner workings da máquina da vendidagem, seus efeitos positivos e negativos na Modelândia e quais são as perspectivas futuras a respeito. Um possível próximo post abordará eventuais questões levantadas pelos leitores nos comentários.)
Eu não lembro quando me foi feita a primeira menção ao termo "vendido" em um modelo. Sei que foi cunhado em 2003, no AMUN daquele ano (meu primeiro modelo), em "homenagem" a um agora aposentado modeleiro da Vetusta Casa da PUC-Minas.
As circunstâncias da criação do termo "vendido" foram um tanto curiosas – o termo surgiu durante uma festa, em uma discussão acalorada a respeito da dinâmica de um comitê então simulado, e a partir de um círculo de amigos popularizou-se durante o modelo. (O Napoleão presenciou a cena, e poderá contar com maiores detalhes posteriormente; nisso eu infelizmente tenho poucos detalhes, e qualquer contribuição será bem vinda.)
Só que depois dessa gênese, o "vendido" acabou tomando figura própria, e tornou-se a gíria mais popular e característica da Modelândia brasileira sem que muitos soubessem exatamente o porquê disso. Salvo por aquele momento inicial em que foi criado, quando o significado do termo era entendido por um pequeno grupo de pessoas, o tema "o que é ser um vendido" tem sido objeto de longos papos em bares por modeleiros empolgados.
O "vendido" não é uma criação modeleira - longe disso. O termo é até dicionarizado: um dos usos figurativos do verbo "vender" (ou "se vender") é "praticar atos indignos por interesse" (cliquem aqui, pesquisem por "vender" e vejam). Nas circunstâncias modeleiras, foi utilizado primeiro em um sentido pejorativo, próximo desse sentido original, com um delegado reclamando das práticas (em tom de brincadeira, mas ainda assim com uma conotação pejorativa) de um outro colega de comitê.
Uma possível definição de vendidagem adaptada especificamente ao mundo modeleiro foi apresentada e comentada em 2006, em um artigo (que em breve será disponibilizado na Biblioteca daqui) escrito pelo então Deputy-Secretary-General for Academic Affairs do AMUN 2006, hoje diplomata, João Vargas:
"To be “sold out” [vendido] is to sacrifice one’s foreign policy in the interests of one’s ego, to make overly dramatic speeches, to make a point of demonstrating one’s knowledge of the most obscure rules of procedure. On the one hand, the endless calls of “Vendido!” are a manifestation of the easy camaraderie and informality that are an essential part of Brazilian MUNs; on the darker side, they are a sign that too often, what should be arenas of negotiation have become spotlights for posturing."
(Nota: uma tradução mais correta para "vendido" seria "sellout", uma gíria existente e usada em inglês; de acordo com o Oxford Dictionary, significa "a betrayal of one's principles for reasons of expedience", o que parece bem consistente com a idéia atual de um vendido. De qualquer forma, o ponto levantado ainda é válido.)
Esta definição foi apresentada, no artigo, em um momento em que o autor discutia sobre as diferenças de procedimento e dinâmica entre modelos norte-americanos (dos quais os modelos brasileiros são, ao menos em sua origem, "filhotes") e brasileiros. A vendidagem seria evidência e, talvez, um efeito colateral de um estilo de modelar, ao que me consta, tipicamente brasileiro: uma forte ênfase em debate formal, reconhecer a eficiência de um delegado como equivalente à sua disposição em falar em público (por mais que o conteúdo dos discursos deixe a desejar), e uma necessidade de mostrar conhecimento de uma forma ou de outra ainda que isso faça com que o delegado pareça arrogante.
Percebam que há uma sutil diferença entre a definição dicionarizada de um vendido (que por si só é perfeitamente aplicável ao mundo modeleiro e que, por uma questão lógica, deve ter sido a definição original) e a apresentada por João Vargas em seu artigo. A rápida evolução e a popularização dos MUNs acabou criando uma imagem própria do que é ser um vendido, uma definição à nossa maneira e adaptada à realidade modeleira brasileira, apresentada por Vargas no artigo.
No entanto, esta definição (que é apenas uma possível, como pudemos ver nos comentários ao post que fiz antes deste) tem uma conotação ambígua. Em um ambiente modeleiro que dá maior ênfase à "presença de palco", por assim dizer, fazer discursos dramáticos e mostrar conhecimento das (às vezes confusas) regras de procedimento, por exemplo, chamam a atenção positivamente de uma parte dos modeleiros (especialmente os novos), e não negativamente (como alguns dos modeleiros mais calejados, adeptos da discrição, achariam).
O ambiente no qual a maioria de nós se familiarizou com MUNs propiciou a "mutação" da idéia exclusivamente negativa de um vendido para uma mais positiva (ou construtiva). Como foi levantado nos comentários anteriores, pelo menos até alguns anos atrás, alguns "vendidos" eram considerados benéficos ao debate, por serem pessoas realmente dispostas a incorporarem o papel de representar o seu país, às vezes até de forma exagerada, o que ajudava o fluxo do debate e mesmo a orientação dos delegados.
Temos, então, duas correntes diferentes, simultâneas e, de certa forma, contraditórias sobre o mesmo conceito - gerando assim o que chamamos hoje uma vendidagem positiva ("boa" vendidagem) e uma vendidagem negativa ("má" vendidagem). O que é cada tipo de vendidagem abordarei no próximo post.
Ambos os tipos, porém, contêm uma raiz única, implícita no conceito original de vendidagem e explícita na definição de João Vargas – a valorização, intencional ou não, construtiva ou não, de determinadas qualidades puramente individuais (como oratória e dramatização) que fazem com que o foco de discussão de um comitê seja desviado em maior ou menor grau do assunto principal em função dos trabalhos ou manipulações de um único delegado (ou delegados), de modo que este(s) possa(m) obter resultados às vezes mais satisfatórios para seu(s) ego(s) e/ou para sua(s) política(s) externa(s). Isto, acredito eu, é a essência da vendidagem. Notem que há uma série de variáveis nesta essência, e são elas que determinam o que é o bom ou o mau vendido.
More to come very soon.
Gostei. Quero mais.
ResponderExcluir*bate talheres na mesa*
[acompanhando o cedê no bater de talheres na mesa!]
ResponderExcluirQue lisonjeador, tudo isso.
ResponderExcluirComo pediu o Pereira, aqui vai a inside-story do momento em que foi criado o mais importante vocabulo da modelagem no Brasil.
ResponderExcluirJulho de 2003. AMUN. Frio extremo em Brasilia. Estamos na segunda balada do modelo.
Alguns delegados do SPECPOL se reunem para discutir etilicamente o comitê. O topico era a legalidade do uso pre-emptivo da força - lembrem-se, era a época da Guerra do Iraque. O delegado da Russia era um certo Guilherme Casarões, modeleiro veterano de Minas Gerais. Seu comportamento não era lá muito russo, mas era impecavelmente diplomatico: discursos técnicos e corretos, postura moderada, perfeito manuseio das regras, liderança discreta do comitê. Isso tudo irrita o delegado da Libia, um certo Chico Dudu, do Rio de Janeiro, igualmente experiente porém muito mais teatral, dramatico e briguento no comitê.
Pois bem, de volta à balada.
Entre uma tequila e outra, Chico Dudu/Kadhafi acusa o quase sobrio Casarões-Putin de se vender à mesa para levar o troféu de Melhor Delegado. O russo nega. O libio insiste. O russo nega de novo. O libio perde o controle e apela para a histeria:
"Casão, você só quer ganhar prêmio. Safadeza. Você está se vendendo. Vendendo! Você é um vendido! Vendido! Ouviu? VENDIDO!! VENDIDO!!!"
Após pronunciar essas palavras dramaticas, Chico Dudu/Kadhafi quase desabou no chão, enquanto que Casarões/Putin ganhou uma reputação vitalicia. E eu, que era Egito no comitê, quase novato em modelos e escandalosamente bêbado na festa, sobrevivi para contar a historia.
Graças ao boca-a-boca, o termo "vendido" rapidamente se difundiu da nossa rodinha para o SPECPOL inteiro, do SPECPOL para o AMUN todo, e do AMUN para toda a Modelândia.
Ou seja, a acepção realmente original do "vendido" no contexto da modelagem brasileira é quase a definição do João Vargas: é o delegado que sacrifica sua politica externa em nome do ego (leia-se "do prêmio") e que faz questão de demonstrar seu conhecimento das regras.
Apenas uma correção: na acepção original, ser vendido nada tem a ver com discursos exageradamente dramaticos. Pelo contrario, inicialmente ser vendido era ser contido e discreto. Essa conotação teatral surgiu mais tarde. Afinal, o primeiro vendido foi o Casarões, e não o Chico Dudu.
Ah, a bottomline é que o Casarões realmente levou o prêmio de Melhor Delegado do SPECPOL...
ResponderExcluirSENSACIONAL!! NÃO SABIA QUE UMA BRINCADEIRA ENTRE AMIGOS IRIA SE TORNAR ASSUNTO PARA DEBATE !!!
ResponderExcluirO FATO É QUE O CASÃO FOIA INSPIRAÇÃO PARA A CRIAÇÃO DO VENDIDO! MAS NAQUELA EPÓCA A ACUNHA ERA PRONUNCIADA ENTRE AMIGOS DE FORMA DIVERTIDA. LOGO DEPOIS ELA SE TRANSFORMOU E, TREMO PEJORATIVO NÃO POR AQUELS QUE AS PRONUNCIAVAM MAS POR AQUELES QUE ERAM APELIDADOS. INFLEIZMENTE OS MODELOS ESTÃO PERDENDO SUA ESSÊNCIA PRINCIPAL, DIRMIR AS DIFERENÇAS E SE TORNANDO PALCO PARA A VENDIDAGEM AO PRÊMIO!
EU E CASÃO "COMPETIMOS" EM VÁRIOS COMITÊS UNS ELE LEVOU OUTROS FORAM EU. MAS ISSO NUNCA FOI IMPORTANTE O QUE VALEU FOI A AMIZADE QUE SE PERDUROU!
SEU VENDIDO!!!!!!!!!!