quinta-feira, 31 de julho de 2008

A insondável arte do position paper

Modeleiro nenhum pode escapar do momento de redigir o position paper (vulgo PP, ou documento de posição oficial, DPO) de seu país, logo antes da simulação. Para a maioria dos delegados, escrever um PP é um tédio. Algo enfadonho e repetitivo, no máximo um mal necessário.

O que pouca gente sabe é que é possível ser criativo e até engraçado na produção destes documentos diplomáticos. Como Representatives of the World vai provar agora, a escrita de um position paper também pode ser divertida! Mostrarei dois exemplos.

O position paper genérico

O carioca Chico Dudu, que ao inventar o termo “vendido” em 2003 entrou automaticamente para o rol das lendas da Modelândia, também criou uma das mais úteis ferramentas para o modeleiro contemporâneo: o position paper genérico. Como o nome sugere, era um documento de posição absolutamente vago, que não dizia nem contradizia nada. Mais diplomático, impossível.

Creio que o position paper genérico do Chico Dudu se perdeu no pântano da aposentadoria modeleira, mas eu li a versão original há alguns anos e resolvi escrever algo parecido. Se você quer estar pronto para representar qualquer país, em qualquer comitê, com qualquer agenda, seu position paper deve ser mais ou menos assim: (cliquem para ler)

Position paper genérico

O position paper arcano

Uma solução menos picareta do que o position paper genérico, mas igualmente divertida, é o PP arcano. Se você não quer que os outros delegados entendam a posição do seu país, basta inundar o documento de adjetivos e citações incompreensíveis e supérfluas em latim, francês ou inglês arcaico.

Exemplo: no WorldMUN do ano passado, ao receber a incumbência de representar um país inerentemente absurdo (ie, Liechtenstein), decidi radicalizar e escrever um PP indecifrável que imita a linguagem diplomática medieval e um humor no estilo Monty Python. Estou com preguiça de traduzir o texto, e em português ele perderia parte da graça, então vai o original em inglês mesmo. Vejam aqui:


Position paper arcano 1
Página 1

Position paper arcano 2Página 2

Existem muitos outros tipos de position paper que fogem do óbvio e tornam a vida dos diretores um pouco mais alegre. Alguém pode citar algum? Respondam pelos comentários.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Os erros que não julgamos ser


A prática modeleira é carregada de juízos de valor. Na argumentação, você deve submeter toda informação apresentada ao crivo do bom-senso e da verdade fática - ou simplesmente ignorá-los, se esta for sua política externa. Você - salvo na exceção que mencionei - deve estar atento pra discernir as falácias das afirmações dignas de crédito, assim como precisa avaliar estratégias e os seus opbjetivos. Tudo faz parte do imenso pacotão analítico que faz parte da rotina do modeleiro. É uma das maiores vantagens do hobby: com algum tempo você supostamente não consegue mais ouvir balela à toa. Supostamente. E nem sempre é à toa.

No meio desse jogo dialético de informação e retórica, às vezes podem acontecer erros. Nós podemos falhar na nossa triagem de argumentos e deixar passar alguma bobagem discreta - ou até flagrante, só habilmente disfarçada - no projeto de resolução. Mesmo que modeleiros sejam econômicos em mea culpas, todos sabem que isso acontece SEMPRE, em qualquer atividade profissional. Ninguém acerta sempre, e quando você é submetido a 50 argumentos numa tarde, é normal que não dê a devida atenção a um ou dois. O motivo pelo qual modeleiros muitas vezes se mostram indispostos admitir o erro não podemos dizer com certeza, mas eu mesmo tenho algumas teorias.

I - "Esconde e Reza" - O delegado não deseja chamar a atenção pra um erro que os outros podem ainda não ter notado.
II - "Tá comigo tá com Deus" - O delegado não deseja macular sua aparência de correição, julgando que um erro poderia afastar apoiadores e suas idéias no futuro da simulação.
III - "Dele-Goebbels" - Uma bobagem repetida eventualmente vai fazer sentido pra alguém.
IV - "Tudo pelo Prêmio" - O delegado sabe que se a Mesa descobrir que ele errou seu Prêmio fica mais difícil. Como ela raramente percebe sozinha, não é ele que vai dizer.
V - "Simplesmente ego" - Simplesmente ego.

São todas opções possíveis e, claro, questionáveis. Não é melhor você simplesmente dizer: "fiz bobagem" e passar logo adiante? Bom, há pelo menos cinco tipos posições contrárias, devem haver ainda mais outras tantas. Mas eu queria destacar nesse tópico outra possibilidade que julgo ser bem mais interessant ee cuja análise pode trazer mais frutos pra nossa prática modeleira: os erros que sustentamos por acreditarmos não constituirem erro algum. Podemos até estar errados, mas em algumas situações somos simplesmente incapazes de perceber isso.

Às vezes é muito difícil pra nós identificarmos nossos erros. Seria necessário algum distanciamento ou um observador desinteressado que pudesse nos informar das nossas trapalhadas. Mesas diretoras não vão - nem devem - corrigir nossos deslizes, a não ser posteriormente, talvez por meio de uma avaliação de desempenho, como faz a SiEM. Modeleiros nem sempre se mostram solícitos para aconselhar seus colegas de simulação, especialmente durante o modelo. Muitos se vêem como competidores, seja pela consecução do objetivo da sua política externa, seja pelo - nesse caso, maldito, - Prêmio. Em condições normais, o delegado precisa se cercar de cuidados incansáveis pra garantir que seu desempenho seja satisfatório. Não se trata de embarcar numa neurose em busca de uma apresentação perfeita, mas sim tomar todas as atitudes necessárias pra mitigar as chances de falhas, e reduzir a influência do acaso sobre o seu trabalho, diminuindo as chances objetivas que você vá fazer qualquer bobagem.

Também há uma situação que eu considero ainda mais interessante. e a melhor forma de eu explicá-la é descrevendo algo que aconteceu comigo certa vez.

Em um determinado modelo eu representei um país muito importante discutindo o tema único do comitê. Talvez pela natureza do país e sua relação com o tema, em pouco tempo me encontrei numa situação de oposição com o restante do comitê. Quando digo restante, eu digo TODO MUNDO. Bom, aí seguimos na simulação: eu apanhava, batia, apanhava, batia. Quando chegou ao fim, tivemos uma resolução, todos comemoraram. Pra 90% do comitê eu saí derrotado. Pra mim, eu tinha absoluta certeza que eu saí com uma vitória incrível, especialmente dado o fato que eu brigava com o comitê INTEIRO. A mesma situação teve uma leitura totalmente diferente pelos dois pólos da negociação. Essa pra mim é a situação mais interessante nesse tema, pois temos fundamentações distintas argumentando que o mesmo fato tem consequências diferentes. Pra mim, eu ganhei de goleada. Mas, pro resto do comitê, compreensivelmente, eu sofri uma derrota considerável.

Não é raro que os dois lados do comitê saiam achando que saíram ganhando. Na verdade, raro é ambos acharem que saíram perdendo, justamente pela já mencionada indisposição de modeleiros pra admitir que erraram. Às vezes, porém, essa diferença de interpretação é justificada. No caso, a questão passa a ser o juízo que você faz da posição do outro que, apesar da sua opinião, pode ter saindo ganhando tanto quanto você.

Um exemplo pra tornar as coisas mais claras: neste último AMUN, quase todos os editores deste blog estiveram no mesmo comitê, em posições antagônicas. A resolução final continha elementos suficientes que deram aos dois blocos (no caso, Comunistas e Ocidentais) certeza que estariam aprovando um bom documento. As concepções que fundamentaram essa posição são várias: política externa dos países, dificuldade de outra medida concreta, background acadêmico. Um observador alheio ao debate perceberia que ambos os lados tem argumentos convincentes que seus interesses foram prestigiados.

O que isso quer dizer afinal? Podem ter acontecido duas coisas: a primeira possibilidade é a de uma autocomposição aparente, em que as duas partes aparentam ter conseguido seus objetivos, mas somente uma, na prática, saiu vitoriosa. A outra seria uma genuína composição de interesses, em que todos, buscando o melhor para si, conseguem um termo médio que agrada e desagrada a todos na mesma medida.

Qualquer que seja a verdade, ela é difícil de se distinguir. Precisamos evitar julgamentos apressados e tentar entender todas as complicações de uma situação assim, pra calcular de fato se as visões defendidas pelos participantes encontrariam suporte na vida real, ou seu impacto a curto, médio e longo prazo. De qualquer forma, é importante destacar que nas simulações não nos esquivamos das complicações que permeiam a vida, e aquele erro crasso naquela derrota retumbante pode muito bem ser uma vitória disfarçada num plano muito mais interessante.