segunda-feira, 28 de julho de 2008

Os erros que não julgamos ser


A prática modeleira é carregada de juízos de valor. Na argumentação, você deve submeter toda informação apresentada ao crivo do bom-senso e da verdade fática - ou simplesmente ignorá-los, se esta for sua política externa. Você - salvo na exceção que mencionei - deve estar atento pra discernir as falácias das afirmações dignas de crédito, assim como precisa avaliar estratégias e os seus opbjetivos. Tudo faz parte do imenso pacotão analítico que faz parte da rotina do modeleiro. É uma das maiores vantagens do hobby: com algum tempo você supostamente não consegue mais ouvir balela à toa. Supostamente. E nem sempre é à toa.

No meio desse jogo dialético de informação e retórica, às vezes podem acontecer erros. Nós podemos falhar na nossa triagem de argumentos e deixar passar alguma bobagem discreta - ou até flagrante, só habilmente disfarçada - no projeto de resolução. Mesmo que modeleiros sejam econômicos em mea culpas, todos sabem que isso acontece SEMPRE, em qualquer atividade profissional. Ninguém acerta sempre, e quando você é submetido a 50 argumentos numa tarde, é normal que não dê a devida atenção a um ou dois. O motivo pelo qual modeleiros muitas vezes se mostram indispostos admitir o erro não podemos dizer com certeza, mas eu mesmo tenho algumas teorias.

I - "Esconde e Reza" - O delegado não deseja chamar a atenção pra um erro que os outros podem ainda não ter notado.
II - "Tá comigo tá com Deus" - O delegado não deseja macular sua aparência de correição, julgando que um erro poderia afastar apoiadores e suas idéias no futuro da simulação.
III - "Dele-Goebbels" - Uma bobagem repetida eventualmente vai fazer sentido pra alguém.
IV - "Tudo pelo Prêmio" - O delegado sabe que se a Mesa descobrir que ele errou seu Prêmio fica mais difícil. Como ela raramente percebe sozinha, não é ele que vai dizer.
V - "Simplesmente ego" - Simplesmente ego.

São todas opções possíveis e, claro, questionáveis. Não é melhor você simplesmente dizer: "fiz bobagem" e passar logo adiante? Bom, há pelo menos cinco tipos posições contrárias, devem haver ainda mais outras tantas. Mas eu queria destacar nesse tópico outra possibilidade que julgo ser bem mais interessant ee cuja análise pode trazer mais frutos pra nossa prática modeleira: os erros que sustentamos por acreditarmos não constituirem erro algum. Podemos até estar errados, mas em algumas situações somos simplesmente incapazes de perceber isso.

Às vezes é muito difícil pra nós identificarmos nossos erros. Seria necessário algum distanciamento ou um observador desinteressado que pudesse nos informar das nossas trapalhadas. Mesas diretoras não vão - nem devem - corrigir nossos deslizes, a não ser posteriormente, talvez por meio de uma avaliação de desempenho, como faz a SiEM. Modeleiros nem sempre se mostram solícitos para aconselhar seus colegas de simulação, especialmente durante o modelo. Muitos se vêem como competidores, seja pela consecução do objetivo da sua política externa, seja pelo - nesse caso, maldito, - Prêmio. Em condições normais, o delegado precisa se cercar de cuidados incansáveis pra garantir que seu desempenho seja satisfatório. Não se trata de embarcar numa neurose em busca de uma apresentação perfeita, mas sim tomar todas as atitudes necessárias pra mitigar as chances de falhas, e reduzir a influência do acaso sobre o seu trabalho, diminuindo as chances objetivas que você vá fazer qualquer bobagem.

Também há uma situação que eu considero ainda mais interessante. e a melhor forma de eu explicá-la é descrevendo algo que aconteceu comigo certa vez.

Em um determinado modelo eu representei um país muito importante discutindo o tema único do comitê. Talvez pela natureza do país e sua relação com o tema, em pouco tempo me encontrei numa situação de oposição com o restante do comitê. Quando digo restante, eu digo TODO MUNDO. Bom, aí seguimos na simulação: eu apanhava, batia, apanhava, batia. Quando chegou ao fim, tivemos uma resolução, todos comemoraram. Pra 90% do comitê eu saí derrotado. Pra mim, eu tinha absoluta certeza que eu saí com uma vitória incrível, especialmente dado o fato que eu brigava com o comitê INTEIRO. A mesma situação teve uma leitura totalmente diferente pelos dois pólos da negociação. Essa pra mim é a situação mais interessante nesse tema, pois temos fundamentações distintas argumentando que o mesmo fato tem consequências diferentes. Pra mim, eu ganhei de goleada. Mas, pro resto do comitê, compreensivelmente, eu sofri uma derrota considerável.

Não é raro que os dois lados do comitê saiam achando que saíram ganhando. Na verdade, raro é ambos acharem que saíram perdendo, justamente pela já mencionada indisposição de modeleiros pra admitir que erraram. Às vezes, porém, essa diferença de interpretação é justificada. No caso, a questão passa a ser o juízo que você faz da posição do outro que, apesar da sua opinião, pode ter saindo ganhando tanto quanto você.

Um exemplo pra tornar as coisas mais claras: neste último AMUN, quase todos os editores deste blog estiveram no mesmo comitê, em posições antagônicas. A resolução final continha elementos suficientes que deram aos dois blocos (no caso, Comunistas e Ocidentais) certeza que estariam aprovando um bom documento. As concepções que fundamentaram essa posição são várias: política externa dos países, dificuldade de outra medida concreta, background acadêmico. Um observador alheio ao debate perceberia que ambos os lados tem argumentos convincentes que seus interesses foram prestigiados.

O que isso quer dizer afinal? Podem ter acontecido duas coisas: a primeira possibilidade é a de uma autocomposição aparente, em que as duas partes aparentam ter conseguido seus objetivos, mas somente uma, na prática, saiu vitoriosa. A outra seria uma genuína composição de interesses, em que todos, buscando o melhor para si, conseguem um termo médio que agrada e desagrada a todos na mesma medida.

Qualquer que seja a verdade, ela é difícil de se distinguir. Precisamos evitar julgamentos apressados e tentar entender todas as complicações de uma situação assim, pra calcular de fato se as visões defendidas pelos participantes encontrariam suporte na vida real, ou seu impacto a curto, médio e longo prazo. De qualquer forma, é importante destacar que nas simulações não nos esquivamos das complicações que permeiam a vida, e aquele erro crasso naquela derrota retumbante pode muito bem ser uma vitória disfarçada num plano muito mais interessante.

7 comentários:

  1. 1. Boa idéia de post.

    2. De fato, ótima foto.

    3. Ao penúltimo parágrafo,

    "a primeira possibilidade é a de uma autocomposição aparente, em que as duas partes aparentam ter conseguido seus objetivos, mas somente uma, na prática, saiu vitoriosa. A outra seria uma genuína composição de interesses, em que todos, buscando o melhor para si, conseguem um termo médio que agrada e desagrada a todos na mesma medida"

    acrescento uma terceira possibilidade: foi criada uma resolução ambígua, que nada significa de fato, e que pode ser puxada para ambos os lados. Isso é puro REALISMO HISTÓRICO, já que existem resoluções aprovadas por consenso ou unanimidade que são posteriormente usadas por lados políticos opostos. VIDE as resoluções do CS dos anos 90 sobre Iraque: EUA clama que autorizam força sobre Saddam, outros juram que não. Podemos ainda citar várias resoluções sobre Oriente Médio nas quais EUA e URSS milagrosamente concordaram.

    Outro "erro": a China aprovar PKOs no Haiti, país que não a reconhece e mantém relações com Taiwan. Num modelo talvez o delegado chinês não ganhasse prêmio. Mas na realidade as coisas são mais ambíguas.

    4. BOTTOMLINE: O que academicamente seria "erro" pode ser politicamente vantajoso. As definições de terrorismo dadas pelo Depto. de Estado e pela OTAN são muito ruins. Mas são erros?

    Outra limitação é o issue-linkage. Simular um comitê é muito totalizante: você, delegado, tem que maximizar sua vantagem ali e pronto. Mas na vida real existem outros comitês, outros assuntos, outras pautas. Pode fazer sentido perder num comitê e ganhar em outro.

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  2. Essa ambiguidade que você citou, Cedê, é típica do "mundo real", que não é esterelizado como um Modelo.

    Visando tornar algo simulável nós reduzimos algumas variáveis. Algumas não, MUITAS, a MAIOR PARTE delas, deixando apenas alguns poucos indícios aos quais damos o nome de Política Externa, que em 90% dos casos só é uma generalização caricata. Holandeses são certinhos, russos são neuróticos, americanos são mandões.

    Um dos maiores exemplos desse afastamento que às vezes geramos é a Economia. A Economia influencia horrores a sociedade. Nem por isso se vê delegado indo pra sessão com caderno de economia e de olho no índice de aprovação do seu governo por causa das altas taxas de desemprego. E indo mais além: ninguém pesquisa se seu presidente é acionista da maior petroleira do país. Oras, isso pode fazer uma sensível diferença. No mundo dos modelos o privado não se imiscui com o público. Bacana, mas pouco realista.

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  3. Esses assuntos são amplos demais para analisar com calma aqui, mas dou os pitacos seguintes:

    - O que é "erro"? Não quero entrar no debate filosofico, mas acho que erro nada tem a ver com falacia argumentativa ou mesmo com mentira. Desde quando diplomatas precisam falar a verdade? Tanto quanto soldados e espiões, eles são pagos para defender um ponto de vista, um pacote mutável de prioridades a que chamamos "interesse nacional". Neste sentido, cobrir os próprios erros é tão importante quanto evita-los. O maior erro seria fracassar.

    - Diplomacia é percepção. O que parece triunfo para alguns, pode parecer fracasso aos olhos de outrem. Esse é mais um motivo (o décimo-primeiro) para que eu seja contra os prêmios em modelos da ONU: como cada pais tem um objetivo diferente, é impossível avaliar todo mundo com o mesmo prisma.

    - A separação entre politica interna e externa é cada vez mais artificial. O bom modeleiro, que sabe pensar como um diplomata, entende que suas ações (não apenas a resolução, mas também a postura no debate; tanto os fins quanto os meios) terão impacto sobre toda a esfera doméstica: não apenas o governo, mas também o setor privado, a opinião publica, a imprensa, igrejas, ONGs, sindicatos, etc. Tudo isso exerce pressão. Eis o jogo de dois níveis do Putnam.

    Em outras palavras, o delegado deve sempre pensar "o que é que eu vou dizer lá em casa?"

    - Estados também não gostam de admitir seus erros. Quando muito, jogam a culpa no regime anterior (ie Alemanha pós-1945 condenando todas as politicas do III Reich, bolcheviques renegando as dividas da Rússia czarista, etc), mas o mais comum é reafirmar as ações passadas do Estado para que a ordem politica presente não seja deslegitimada. Esse é o ÚNICO motivo que impede a Turquia de reconhecer o genocídio armênio.

    Neste sentido, acho normal que modeleiros-diplomatas demorem para admitir quando erram, a menos que seja taticamente necessário.

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  4. Interessante mesmo o post.

    E já que a prática é fazer comentários, seguirei com ela. Quando vc diz que "Mesas diretoras não vão - nem devem - corrigir nossos deslizes, a não ser posteriormente, talvez por meio de uma avaliação de desempenho, como faz a SiEM" - isso é meio complicado de se afirmar assim. Há estudos no sentido de que um dos "musts" ao formular um role-playing da diplomacia é o debriefing, a avaliação de erros e acertos, de preferencisa periodicamente entre sessões. Particularmente no caso de modelos de ensino médio, considero a necessidade de se fazer tal coisa. Na minha experiência de ensino médio, os delegados não apenas precisam, como desejam um feedback de desempenho antes do fim e se empenham em construir uma atuação melhor quando corrigidos.

    Em casos de modelos de ensino superior, sabemos que as coisas ocorrem de forma distinta, como bem citado no post - normalmente críticas não são bem-vindas, pois todos os delegados vêm com seus "pacotes de verdades" trazidos de casa. As verdades de um delegado, por razões óbvias serão falácias para outro. Aliás, não raro o pacote ignora a existência dessa multiplicidade de verdades acerca do mesmo tema, constituindo-se num erro tático básico. Mas na minha humilde opinião, problema é quando a mesa resolve que a verdade é dela... a unilateralidade de uma entidade criada apenas para o mundo dos modelos é de um surrealismo tremendo...

    E Cedê, depois que o delegado inglês (da gema =P ) representante do Reino Unido, abdicou de seu poder de veto no Conselho de Segurança e ganhou prêmio - ainda que, pelo menos na minha cabeça, isso seja inconcebível no munod real ou dos modelos - talvez um delegado chinês pudesse seguir estritamente as ambigüidades chinesas sem comprometer seu prêmio... in case it is his final objective, what should not be...

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  5. Concordo com o Cedê na questão do "issue-linkage". É difícil você fazer o delegado russo perceber a vantagem de não vetar alguma coisa no UNSC para ganhar apoio para entrar na OMC. Isso acontece principalmente em simulações de ensino médio, onde, geralmente, o delegado não tem ainda essa percepção (eu disse geralmente).

    O Wagner tem completa razão neste post. Eu não lembro de nenhuma simulação em que eu achei que saí perdendo. Em contrapartida, sempre prestei mais atenção na perda dos outros do que na minha própria. As concessões que fazemos são parte do jogo diplomático, e geralmente "perde" quem cede mais.

    Em um comentário à parte, acho que as negociações de Genebra da rodada Doha da OMC são um bom exemplo de situação "loss-loss". Ao contrário da situação "win-win", é mais provável que o acordo não exista, visto o descontentamento de ambas as partes.

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  6. Em tempo, errar por vezes é bom. Eu me lembro de ter cometido erros graves e de ter sido "derrotado" em dois comitês, talvez três. Com justiça, não levei prêmio nestas ocasiões. E ainda levei alguns dias para compreender o que tinha errado.

    Fora isso, é evidente que cometi enganos menores, táticos, em muitas outras simulações, ainda que não tenham comprometido o resultado final, e o autor deste post sabe qual foi o caso mais recente.

    Contudo, jamais vi uma mesa diretora se desculpar publicamente por seus erros na moderação, na elaboração das crises e cartas ou na feitura do manual. No máximo, vi um secretariado pedir efusivas desculpas pela implosão de um certo comitê ha dois anos. Modeleiros organizadores poderiam aprender mais com seus erros, não?

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  7. 1. Lou Lou, quero saber mais dessa história =) Abdicou do veto? Hem?

    2. O Napô está certo, as Mesas e o Staff se desculpam pouco.

    3. O feedback entre sessões ou durante é feito em modelos internos de Ensino Médio aqui em BH, sei disso porque eu já fiz =p. Pode ser feito em todos os modelos sem chamar atenção por meio de cartas. Sei que em um modelo universitário um delegado já teve comportamento corrigido via carta.

    4. "a unilateralidade de uma entidade criada apenas para o mundo dos modelos é de um surrealismo tremendo" Discordo da Lou Lou aqui, se é que entendi o que ela quis dizer. Como modelos são RPGs em essência, deve haver um árbitro final, senão delegações diferentes podem imaginar coisas diferentes. É preciso que todo mundo esteja no mesmo mundo de jogo.

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