terça-feira, 20 de novembro de 2007

O papel do "nacionalismo transferido" em modelos


Que modeleiro nunca cantou o hino do seu país, ao menos em uma de suas viagens?

Que modeleiro nunca empunhou com orgulho uma bandeira estrangeira, cumprimentou o Presidente na língua oficial, experimentou algum prato da culinária do país que representava, encorajou a delegação a cantar uma música típica...?

O nacionalismo têm um papel importante em modelos. Evidentemente, não o nacionalismo-padrão, do contrário (quase) todos torceriam pela delegação do Brasil, até nos comitês em que o Brasil não está!

Estou falando do nacionalismo transferido. Uai, mas existe isso?

Bem, digamos que, em 1945, a Carta das Nações Unidas não foi o único documento internacional importante produzido. Também tivemos Notes on Nationalism, um ensaio do mestre George Orwell. O autor explica o que é nacionalismo, quais são seus efeitos, e quais os principais tipos de nacionalismo que existiam à época.

Para Orwell, o nacionalismo tem três elementos:

I) Obsessão - "As nearly as possible, no nationalist ever thinks, talks, or writes about anything except the superiority of his own power unit. It is difficult if not impossible for any nationalist to conceal his allegiance. The smallest slur upon his own unit, or any implied praise of a rival organization, fills him with uneasiness which he can relieve only by making some sharp retort."

Entram aqui as mil questões de privilégio pessoal nem sempre bem-vindas ou corretas, os insultos, as críticas ao "modo de vida" dos outros, os provérbios chineses, as expressões em francês, os porta-vozes do Mundo Livre ou do Movimento dos Não-Alinhados, etc.

II) Instabilidade / Transferabilidade - "One quite commonly finds that great national leaders, or the founders of nationalist movements, do not even belong to the country they have glorified. Sometimes they are outright foreigners, or more often they come from peripheral areas where nationality is doubtful. Examples are Stalin, Hitler, Napoleon, de Valera, Disraeli, Poincare, Beaverbrook".

Isto é importante em MUNs, porque Orwell diz que "for an intellectual, transference has an important function which I have already mentioned (...) It makes it possible for him to be much more nationalistic — more vulgar, more silly, more malignant, more dishonest — that he could ever be on behalf of his native country, or any unit of which he had real knowledge." Isto é, eu posso ser muito mais ferventemente nacionalista sobre o Nepal ou a Indonésia do que sobre meu Brasil brasileiro.

III) Indiferença à Realidade - "All nationalists have the power of not seeing resemblances between similar sets of facts. A British Tory will defend self-determination in Europe and oppose it in India with no feeling of inconsistency. Actions are held to be good or bad, not on their own merits, but according to who does them (...)"

Este talvez seja o começo do conceito de doublethink, que Orwell criaria no livro 1984. Fundamental em modelos. A França sob Chirac falou mal dos Estados Unidos pela invasão no Iraque, mas entrou na Costa do Marfim sem pedir autorização a ninguém. Rússia e China falam em "paz" enquanto massacram a moçada, e falam em "responsabilidade" ao mesmo tempo que vetaram incluir Burma / Myanmar na agenda do CS em janeiro deste ano (deu no que deu). O Brasil falava muito em etanol, e pá, "de repente virou a Arábia Saudita", como muito bem disse Diogo Mainardi no Manhattan Connection.

O LANCE - A questão é que o nacionalismo transferido realmente existe, mesmo fora dos modelos - conheço pessoas que certamente demonstram serem nacionalistas transferidos themselves. (Não sei se é um mal da moçada de RI.)

Mais do que isso, ele é um fenômeno concreto nos modelos - por muito tempo após o MONU 2005, eu sempre dava uma certa razão aos monarquistas quando lia notícias sobre o Nepal, de tanto ter me embrenhado no ponto de vista do Rei Gyanendra. Ainda penso um pouco assim - afinal, os inimigos são os terroristas maoístas!

Da mesma forma, ainda guardo um certo carinho pelo Zimbábue e pelo Chile, embora eu tenha ojeriza ao Mugabe e não goste da Bachelet. E morro de saudades da minha Indonésia, mesmo nunca tendo estado lá. E juro, às vezes chego mesmo a acreditar que o programa nuclear iraniano é pacífico e que a fatwa do Líder Supremo dizendo que as bombas atômicas são anti-islâmicas é sincera.

Perguntas:

I) Em que medida você acha que o nacionalismo transferido te influencia(ou) em seu desempenho como delegado e no avanço dos interesses do país?
II) Em que medida ele ajuda(ou) na coesão da delegação?
III) E em que medida ele torna(ou) o modelo mais divertido?

7 comentários:

  1. Respondendo tudo de uma vez, o nacionalismo transferido é um major factor da diversão nos modelos e da coesão das delegações. Sem ele, não haveria a Ode à Mãe Russia, as festas culturais, as incontaveis preces a Meca e assim por diante.

    Verdade seja dita, isso não torna a simulação mais realista, pois diplomatas normalmente são discretos e low-profile. Mas acho fundamental que os delegados incorporem suas nacionalidades até as ultimas conseqüências. Se você resolveu representar o Sudão, aprenda a pensar e agir como um genocida. Faz parte do jogo.

    Sem o doublethink basicamente não existe politica, 'baixadô! O direito internacional (soberania x auto-determinação, não-interferência x DH), a determinação das fronteiras, tudo é doublethink, tudo é humano, tudo é arbitrario.

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  2. Nacionalismo transferido é aquilo que ensinamos novatos a fazer quando dizemos: "quando você entrar lá, você não é brasileiro, você é (inserir nacionalidade do país)".

    O fato é que nacionalismo transferido é parte integrante de modelos. A própria fé que, em estudando, se adquire na própria causa nacional, ajuda a defender melhor seu país.

    Já fui França tendo que defender subsídios agrícolas enquanto minhas convicções pessoais são diametralmente opostas, assim como já vi dois namorados quase se matando em um comitê por conta de propriedade intelectual. É necessário entender que lá dentro é lá dentro e aqui fora é aqui fora. Tenho certeza que todos os modeleiros de longa data já passaram por alguma situação similar.

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  3. Bons tempos de Tenente-Brigadeiro caçador de subversivos no araguaia. Comitês de Gabinete são ainda mais psycho! Nós ficamos realmente esquizofrênicos e com dupla personalidade. Mas eu acho que ajuda a manter o espírito das simulações em dia. Não é possível representar um país sem se entregar à causa que ele defende. Estou torcendo pelo Musharraf, adoro a Holanda, quero que a Irlanda domine o mundo e acho super legal o mega programa de energia nuclear do Japão.

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  4. Primeira vez que deixo um comentário aqui, então vou elogiar pq faz quase três horas que estou lendo coisas muito interessantes, parabéns aos amigos, não podia esperar nada diferente!

    Respondendo o post, acho que sair da realidade e se imbuir de um espírito, as vezes de valores, tão diferentes, é uma oportunidade importante pra que nós em diversos sentidos. Seja pra prestar mais atenção em temas que passam batidos, seja pra ampliar nosso campo de visão, seja pra crescer em tolerância.

    Infelizmente muita gente vai a modelo, diz uma série de coisas lindas e não aplica nada daquilo em sua vida. Essa filosofia do entendimento, da postura democrática, de estar predisposto ao diálogo e ao entendimento pode fazer muita diferença na construção de uma elite intelectual que comandará o país nas próximas décadas.

    Fora isso, é sensacional acordar num quarto de hotel, olhar uma bandeira estranha presa no espelho e se sentir um nacional daquele Estado, mais que isso, um nacional que está ali em nome de uma população inteira. Essa realidade temporária cria toda uma atmosfera de envolvimento, é um elemento fundamental.

    Abraços!

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  5. Detecto aqui uma excelente oportunidade para jogar lenha na fogueira. Vamos cruzar este post com uma discussão sobre ética em modelos que tivemos aqui no blog seis meses atras (ler http://modeleiro.blogspot.com/2007/05/tica-dos-modelos.html ).

    Em MUNs, o nacionalismo transferido é estimulante e divertido quando representamos regimes mais ou menos normais e toleraveis - sejam eles democracias, como Uruguai e França, ou mesmo ditaduras peso-leve como o Paquistão e Belarus.

    Mas como fica o nacionalismo transferido quando o delegado representa a Alemanha nazista ou a URSS stalinista, hein? Existe o risco de que o delegado alimente certo "carinho" (usando o termo do Cedê) pelo Reich ou pelo Paraiso do Proletariado, não apenas durante mas também depois do modelo? Ou as pessoas sabem separar as coisas?

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  6. Esse ponto do Napoleão torna-se ainda mais assustador e nebuloso quando se pensa nos delegados do Foro de São Paulo, uma vez que a União Soviética e a Alemanha Nazista são regimes que o senso comum reconhece como mal. Mas e em casos contemporaneos, quando a falta do distanciamento histórico ainda não permite um julgamento tão categório sem que se seja acusado de ser ideologicamente orientado? Tão intolerável quanto a URSS, o terceiro Reich, é o regime de Chávez, o de Castro, o de Ahmadinejad e as FARC.

    Disso surge: temos que tolerar ditadores e não mostrar que eles são realmente tão destrutivos quanto Hitler ou Stalin somente porque eles nos são contemporâneos?

    Algumas destas questões me fizeram tomar uma decisão importante na minha carreira de modelos que é só representar o que eu acredito. E depois de representar o Brasil, essa linha tem sido observada por mim. E digo, represento os países com uma felicidade que não encontraria em outras representações. E caso você esteja se perguntando quais são as representações, digo: UK, USA e Israel, na ordem temporal.

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  7. Esse é um dos melhores posts que esse blog já teve, parabéns Cedê!

    Eu concordo com o Camarada (olha o nacionalismo nostálgico aqui) Napokov, faz parte do animus da coisa você entrar mesmo no personagem, com mais força que até um nacional daquele país normalmente teria.

    Mas o ponto qu emais me interessa é o segundo ponto levantado pelo camarada, a Ética. Me preocupa bastante o fato que nosso cinismo - pode chamar de distanciamento da realidade também, eu prefiro acreditar sabemos da realidade, o que nós perdemos foi o tato e ficamos, como diria aquela banda, comfortably numb.

    Eu acho que esse cinismo, por mais que nos ajude muitas vezes a encarnar e entender mais intrinsecamente como se passam as coisas no "mundo real", nos distancia um pouco do nosso papel de agentes transformadores da realidade.

    Não nos modelos, ninguém precisa salvar o mundo no modelo, você pode até gerar uma guerra mundial, não interessa. Pessoas não vão morrer e no máximo alguém vai te xingar eternamente, você sobrevive. O pobrelma é o que você leva disso pra sua casa e pra sua (futura) profissão. Nós somos e formamos formadores de opinião e podemos até ser e formar, se assim o quisermos, agentes de mudança. Se nós nos tornamos insensíveis, esse segundo papel se torna descartável, como vamos mudar o mundo se tanto faz?

    De forma alguma também eu acho que a postura a ser adotada é a da democracia orgulhosa - só vamos simular coisas politicamente corretas - o que implicaria em, aí sim, mergulhar no unipartidarismo e enterrar de vez o grande privilégio que nós temos de usufruir do aprendizado das divergências irreconciliáveis. Eu entendo a postura do Bartels, mas eu acho que, por mais que ele provavelmente tome essa posição em prol de uma ideologia pessoal mais coesa, eu tenho como opção pessoal minha uma visão diferente dos modelos, que me servem mais pra questionar o que eu realmente sei do que pra me ajudar a formar minha consciência. Mas esse sou eu, e é engraçado e interessante você ver como pensam as outras pessoas sobre fatores assim, e como eles impactam suas escolhas.

    Bom, acho que precisamos sim de simulações nazistas, genocidas, xenofóbicas, mas sem jamais esquecer que isso não é só brincadeira, são conceitos que podem impactar positiva ou negativamente a cabeça de alguém, então é preciso cautela.

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