quarta-feira, 1 de abril de 2009

A ideologia "por trás" dos modelos

Hoje é primeiro de abril. Este blog completa dois anos. (Veja nossos primeiros posts - vinte em um único mês, recorde nunca mais igulalado).

Em nosso primeiro aniversário, publiquei algo especial: uma entrevista com Guilherme Casarões, o vendido nº1.

Hoje venho de novo com um tópico especial. Dividido em três incríveis partes!



PARTE 1 - TEM SEMPRE ALGUÉM POR TRÁS

Esta primeira parte é necessária procês entenderem este post, apesar de não ter nada a ver com modelos. Ocorre aqui em Belo Horizonte, e provavelmente em todo o Brasil, um interessante fenômeno filosófico, resumido na frase "isso aí tem alguém por trás".

Basicamente: grandes filósofos e cientistas políticos brasileiros, em especial os taxistas, clamam, em qualquer evento político ou midiático mais interessante, que "tem alguém por trás".

"Você acha que o Obama virou Presidente à toa? Isso aí tem alguém por trás".

"Você acha que o Marcio Lacerda é que é o prefeito de Belo Horizonte? Isso aí tem alguém por trás".

"Esse Protógenes, sei não... Tem alguém por trás".

Etc., etc.

A brilhante pessoa que diz isso se sente muito inteligente ao fazê-lo. E, claro, nunca precisa se dar ao trabalho de dizer QUEM, afinal, está "por trás".

Pela sua repetição, pela sua sonoridade, e pelo seu duplo sentido, a irritante frase tornou-se um dos meus cacoetes favoritos do momento, e a estou usando em diversas conversas coloquiais aqui em Bê Agá.

Não se trata de atitude sincera. Ninguém tem o direito de ser sincero: tem sempre alguém por trás!

PARTE 2 - UM BLOG SÉRIO SOBRE SIMULAÇÕES SÉRIAS

Todo modeleiro deveria adicionar em seus favoritos o PaxSims, blog do professor Rex Brynen e do economista do Banco Mundial Gary Milante. No mínimo, é o blog com a melhor lista de links para simulações que já vi. Não, não simulações da ONU! - embora haja um link pra UNA-USA. Mas há trocentas simulações políticas, muitas delas pra lá de profissionais. Simula-se de tudo: a atividade de profissionais do Imposto de Renda americano, incluindo armas de brinquedo e algemas pros delegados; campos de refugiados; crises políticas em alto nível ("gabinetes"); pobreza (!); guerras; o que você puder imaginar. Tem muita simulação séria e de alto nível neste mundo, e, acredite, você não conhece um décimo delas!

Pois bem. Um dia eu volto ao PaxSims, que fica como presente de aniversário para quem freqüenta o blog. O que interessa, por ora, é que foi no PaxSims que vi o link para...

PARTE 3- A MOLLE INDUSTRIA E A IDEOLOGIA POR TRÁS DAS SIMULAÇÕES

... o site da Molleindustria, uma empresa italiana que quer discutir "as implicações sociais e políticas dos videogames", ou, dito de outra forma, enxergar as regras dos videogames como meio político.

Não se enganem. A Molleindustria é bem de esquerda, subversiva, revolucionária. Basta ver jogos como Oiligarchy, Operation: Pedo Priest (!) e McDonald's Videogame. Mas encaixo-a em minha lista de esquerdistas inteligentes e bem-humorados, como Larry Rohter e Thomas Friedman.

Uma questão levantada pela Molleindustria a respeito de seu jogo Oiligarchy (demorei pra perceber o trocadilho) vale para todos nós, e é muito importante.



Dizem eles:

"Since the inception of the Molleindustria project we argue that game design is never an ideologically neutral process: games, as every other cultural product, reflect the designers' beliefs and value systems. And this is particularly visible in games that claim to “simulate” actual non-deterministic situations.
We want to stress this idea by proposing a sort of politically informed 
post-mortem in which we describe the odd challenges of producing social commentary into a playable form.
Video games are intrinsically opaque texts due to their double nature of source code and playable software. Certainly the source code is the strictest manifestation of the algorithm, but it is generally unavailable or unintelligible to the player (...) There is no definitive way for the player to assess that a certain output is triggered by a certain input".


O que eles afirmam para videogames também serve para nossas simulações analógicas - que por mais que envolvam TI, ainda são basicamente analógicas, bem longe das simulações computadorizadas do Pentágono.

"Games referencing real-world elements and historical events are problematic cultural artifacts. Software does not constitute a document itself as a documentary footage or a journalistic report. Games often feature carefully reproduced elements such as characters, vehicles, and weapons, however the way these elements operate and relate to each other via the gameplay is always dictated by an algorithm that cannot be directly related to any actual entity (in the way, for example, a picture or a film have and direct, indexical relationship with objects in time and space). It is possible to create credible representations of phenomena that are already formalized into sets of rules (e.g. physical models), but when it comes to social systems or, more in general, human behavior our programming languages seem to be inappropriate tools".

Modelos também funcionam assim. São produtos culturais, cuja relação com o fenômeno representado não pode ser direta, mas depende de "algoritmos" e de muita mediação humana.
Nas simulações, os algoritmos definem como os inputs devem ser feitos. São as regras de procedimento, o credenciamento, os documentos de posição, o tempo de discurso, o formato da resolução (sempre GERÚNDIO PRIMEIRO e PRESENTE DO INDICATIVO depois, etc.), as regras para emendas e muitas outras.

Os outputs dependem da mediação humana. A recepção dos discursos pelos outros delegados, a votação das emendas e dos projetos de resolução, se a mesa diz "excelente uso do tempo" ou não, etc. E claro, os prêmios.

Não é possível ser neutro nesse esquema todo. Se a ONU é vista como grande assembléia de paz e solução dos problemas do mundo, há uma ideologia. Guias de Estudo podem deixar importantes fatos de fora, como a corrupção no Petróleo por Comida, as razões pelas quais França, Rússia e China não queriam a invasão ao Iraque em 2003, etc. Mesmo se esses fatos forem relevantes ao tópico.

Outra pergunta ideológica inescapável: fatos muito favoráveis ou desfavoráveis a um determinado país - portanto, a um delegado - devem constar no Guia de Estudos? A resposta é "depende". Mas cada "sim" e cada "não" resultam em conseqüências ideológicas no comitê. O Guia de Estudos sempre tem alguma autoridade. Faz diferença se um determinado fato precisa ser trazido por uma parte interessada, ou se esse fato está no guia elaborado pela organização do evento.

Alguém acha que algum Guia sobre o conflito árabe-isralense é neutro? Mesmo os Guias que criticam os dois lados caem num problema ideológico, que é o de equivalência das partes. Em muitos dos casos, eu (por exemplo) não concordo com isso, já que Hamas e Israel não são moralmente equivalentes. O primeiro não reconhece o direito do segundo existir.

"Despite that, mathematical models constituting the core of a game can be based on documents or derived from well-informed theories. Obviously the goal has not been to produce some kind of scientific, objective representation, but to outline a web of cause-and-effect-relations that can arguably share strong qualitative similarities with the mess we call reality".

Todo modelo, toda simulação, mesmo que não pense nisso, estabelece causas e efeitos. Esta constatação lança luz no debate ocorrido neste blog sobre prêmios, em abril de 2008. Napozêra lançou 10 razões para acabar com os prêmios em modelos; eu lancei minhas 10 razões para mantê-los.

Trata-se de discussão de causa e efeito, input e output. Napô argumento que prêmios não fazem sentido, são absurdos; eu rebati dizendo que prêmios existem na vida real. Quais causas devem resultar em quais efeitos? É decisão do programador. E nem sempre, aliás, quase nunca, o jogador tem acesso ao que o programador escreveu.

Este debate ganha mais relevância nas simulações de gabinetes, já que envolvem muito mais inputus e outputs, com grande freqüência.

- Invadir um país resultará em benefícios para a segurança? Valerá a pena? Quanto vai custar? Quem estará do nosso lado? Qual será a reação do público doméstico?

- Essa nova política do FMI ou do Banco Mundial - será bem recebida? Por quem? Ela seria aprovada na organização de verdade?

- Um delegado muito influente, que convença o comitê a aprovar algo absurdo - a Mesa deve deixar? Quais são as implicações?

- O modelo deve ter prêmios? Deve ter avaliações? Como serão feitas?

- O Guia de Estudos deve conter referências à corrupção dentro da ONU? Por quê?

- Em relação a conflitos, o Guia deve ser sempre "neutro"? Por quê? Isso resulta numa neutralidade de fato?

Na verdade, todo o debate pode ser resumido com o seginte trecho de entrevista, retirado do glorioso PaxSims. Fala a professora Sherry Turkle (MIT!) de estudos sociais e tecnologia: 

"There’s a generation that is growing up with the computer as an appliance, and they truly have no understanding of how it works. In my book, I tell the story of a girl who was a power player of the game Sim City. She talked to me about her “David Letterman Top Ten Rules of Sim City,” and rule number 6 was “raising taxes leads to riotsbecause when she did that, that happened in the game. She didn’t understand that if I had programmed that computer, raising taxes would’ve led to more social services and greater social harmony. She was drawing a set of conclusions about how the world worked based on the simulation. The trouble with that was not that she was using the simulation, but that the simulation wasn’t transparent to her".

É isso aí. Só porque acontece assim na simulação, não quer dizer que seja do mesmo jeito na vida real. OK, isso é óbvio.

O que não é óbvio é: quais as implicações ideológicas das relações causa-efeito que estabelecemos em nossas simulações?

Na sua simulação, aumentar impostos leva a protestos ou a mais serviços sociais e harmonia social (ugh)? E por quê?

(Exemplo de jogo ideológico da crise econômica: http://www.tiltfactor.org/layoff/)

3 comentários:

  1. Excelente post! Excelente mesmo!!

    A discussão sobre o fator ideológico que permeia as simulações é interessantíssima e muito importante. Especialmente nos modelos para Ensino Médio, em que lidamos com sujeitos em fase de definição de personalidade e de posicionamentos políticos, a influência que um guia de estudos (ou mesmo um diretor) pode ter é imensa.

    Apesar de concordar que "não é possível ser neutro nesse esquema todo", acho que dá pra tentar chegar perto disso. Reconhecer que as posições pessoais dos diretores têm reflexo no produto final não equivale a achar isso natural. Já vi guias de estudos em que os diretores deixam muito claro o viés ideológico do comitê, e tratam aquele viés particular como verdade absoluta. Acho isso uma espécie suja de doutrinação (suja porque disfarçada de verdade incontestável).

    Não vou entrar na discussão sobre as consequências da ideologia na simulação em si (apesar de achar que isso também é importante). Minha maior preocupação é com o "efeito Sim City" (para emprestar o exemplo que o Cedê mencionou) dos modelos. Quando um delegado sai de um comitê artificialmente transformado, achando que "impostos sempre produzem insatisfação", a simulação deixou de cumprir sua função educativa. A ferramenta de educação se transformou num instrumento de influência, numa espécie disfarçada de Partido.

    Existem muitas formas de evitar que isso ocorra (ou ao menos minimizar o fato). A principal delas é assumir o problema abertamente. Me lembro que, na introdução do guia do Politburo da SiEM 2007, havia a seguinte mensagem:
    "Convém acrescentar que este guia não é imparcial, nem reflete em absoluto as posições políticas da SiEM. O texto apenas obedece a linha ideológica e historiográfica do Partido Comunista da União Soviética no início dos anos 1950. Este comitê não é uma apologia de qualquer regime. Cabe ao delegado decidir no que acreditar."

    Enfim, acho que a principal tarefa dos diretores de qualquer comitê é estimular a reflexão e o debate. Se é impossível deixar as posições pessoais completamente de lado, é possível ao menos deixar claro que elas são pessoais, o que já é um grande progresso...

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  2. Recorro a Weber na observação de que não obstante o fato de ser impossível ser imparcial, deve-se tentar sê-lo. A afirmação é para a produção de ciência mas serve perfeitamente para diretores de simulação. Tentar ser imparcial faz uma diferença gigante.

    Quem não é capaz de reconhecer no próprio texto/ação algo que poderia ser mais neutro?

    Princípio que tenho eu como diretor é de tentar levantar reflexão ao invés de simplesmente propagar idéias. Especialmente idéias políticas.
    Quando digo isso me refiro a propor explicitamente uma reflexão, porque a parcialidade pode ser uma forma negra de levantá-la. Levanta a reflexão para uns mas doutrina outros.

    Como já aconteceu comigo, quando delegado, em simulação. O excesso de parcialidade que vi vez ou outra contribuiu para minha auto-reflexão ideológico-política.
    Mas nesse ponto o mérito é do delegado, não do diretor. Ao contrário, por mais moralista que isso possa parecer, quem sai perdendo é só o diretor, que passa, ao menos àquele delegado, a ser amplamente desacreditado.

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