sábado, 12 de maio de 2007

A ética dos modelos

Para toda a sujeira do mundo, a ONU é o tapete. As organizações internacionais pregam (mas nem sempre praticam) a paz, os direitos humanos e a tolerância entre os povos. Até que ponto suas simulações devem ser pautadas pelos mesmos princípios? A modelagem deve ensinar valores morais? É "correto" simular os processos decisórios de ditaduras, o planejamento de atrocidades e a discussão de grandes crimes?

Delegados simulando fascistas e nazistas na Conferência de Munique
Estas questões ganharam importância com a atual onda de modelagem "ousada". Os comitês estão cada vez mais malvados. Dois anos atrás, o TEMAS simulava o Pacto de Varsóvia deliberando sobre a invasão da Polônia. Em 2006, enquanto alguns delegadinhos da SiEM escreviam uma versão ainda mais perversa do AI-5, outros defendiam os interesses da Alemanha nazista, invadindo a Tchecoslováquia em 1938. Daqui a alguns meses, numa recriação do Politburo Soviético que vai escolher o sucessor de Stalin, os delegados deverão mentir e trair o tempo todo e terão a possibilidade extraordinariamente imoral de expurgar uns aos outros. E já existem boatos de uma simulação da Conferência de Wannsee (aka "que tal um Holocausto, Adolf?") no futuro próximo. Talk about evil!

Imagino que estas simulações incomodem muita gente. Mas a malvadeza modelística não pára por aí. Muito antes dos primeiros comitês maldosos, no tempo em que todo mundo simulava a ONU, já era comum ver delegados roubando resoluções, plagiando emendas, enganando colegas e mentindo deslavadamente. Enfim, agindo como os diplomatas agem na vida real.

A discussão sobre a ética dos modelos lembra mais ou menos o debate sobre os videogames violentos que supostamente estimulariam a agressividade. Um comitê perverso e/ou a vendidagem desonesta podem conduzir alguém ao lado negro da força? Sempre é bom lembrar que modelos da ONU, entre outras coisas, são ferramentas educativas e de formação humana.

Eu sou pela liberdade. Penso que é possível aprender bastante pelo exemplo negativo e até pela ironia. Duvido muito que um estudante se torne mais autoritário apenas por ter representado o General Médici, o Joseph Goebbels ou o Lavrenty Beria. Aliás, acho o contrário muito mais provável. Já o comportamento imoral de alguns delegados (roubo, plágio, mentiras) em comitês supostamente bonzinhos é algo mais sutil e insidioso. Porém, penso que isso apenas reflete as trapaças que existem na vida real. Se o mundo fosse povoado por santos, não haveria necessidade de ONU e muito menos de simulações da ONU.

Três autocratas russos
Talvez a minha opinião seja distorcida pelo fato de que sou um ateu safado e às vezes cínico. Mas eu espero que os modelos de ONU nunca sejam sujeitos a qualquer tipo de censura ou controle moralista. Selos indicando que "este comitê é recomendado para maiores de 21 anos" ou que "este tema contém aspectos eticamente condenáveis". Por enquanto, nada disso existe. Não abertamente.

16 comentários:

  1. Isso tem bastante a ver com que tipo de concepção nós temos a respeito dos modelos - um dos meus posts longos na série de integração de MUNs. Se pensamos que MUNs e simulações têm que ensinar valores first and foremost, será um processo natural o eventual desaparecimento de comitês mais malvados.

    Muito embora participar do CSN-1968 como um militar linha-dura não irá te ensinar a matar comunas, nem participar como a Alemanha nazista vai te deixar com nojo de judeus, o aprendizado que você tira desses comitês é "indireto" - ou, em outros termos, reverse psychology. Você aprende com anti-exemplos, e muitas vezes você precisa de um pouco de maturidade extra para compreender plenamente aquilo que você está vivenciando. Talvez disso decorra a "fama" de que comitês malvados são para pessoas com experiência prévia em modelos (algo que eu concordo em parte).

    Ver simulações desta forma necessariamente implica em alguma seletividade de uma forma ou de outra, e em uma visão de mundo em que MUNs são arautos do bom-mocismo e de world peace, seria um pouco incompatível. A idéia sob esse ponto de vista é divulgar MUNs como fortalecedores dos valores da ONU (ou outros valores quaisquer do mundo cor-de-rosa). Explicar como a Conferência de Wannsee propagaria esses valores é um esforço extra que alguns podem não compreender de primeira.

    O espírito de aprendizado dos comitês inerentemente malvados é mais condizente com a visão de MUNs como atividades acadêmicas. Nesse ambiente, há mais liberdade para determinar como cada comitê funciona, quais tópicos, e que tipo de aprendizado você quer dar.

    A questão da falta de ética de determinados diplomatas é algo paralelo a isso, mas não há exatamente uma forma de "corrigir" isso. Corrupção em prol dos próprios interesses é algo presente no comportamento humano, e não há simulação que vá consertar isso. A idéia é ter um sistema que puna aqueles que não saibam jogar pelas regras. Isso ao mesmo tempo acontece e não acontece no mundo real, e simulações têm que levar isso em conta também (como o Cedê certa vez comentou a respeito, ONU tem sujeira sim, e o ideal é que simulações tenham esse aspecto menos divulgável nos workings dos comitês).

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  2. By the way, a próxima grande idéia para um comitê malvado é a Havana Conference de 1946 (obviamente, não confundir com a do AMUN), ou então a precursora, a Atlantic City Conference de 1929. Depois de ditadores e genocidas, o próximo passo para a malvadeza MUNística é a máfia. ;)

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  3. Excelente post. Além de bem-escrito, mais uma prova da riqueza de coisas que um blog como este ainda tem para discutir. Três pontos:

    1) Não é possível um MUN 100% bonzinho. No mínimo vai ter delegados de China, Cuba, várias ditaduras africanas e asiáticas, etc. Dizer que uma simulação da ONU consolida "bons valores" é meio difícil quando muitos de nossos delegadinhos defendem interesses de ditaduras corruptas. Nos comitês grandes tipo AG a proporção será ainda pior.

    2) No McMUN do Canadá, rolam avisos que requerem experiência e cuidados daqueles que querem participar de gabinetes como o Reichskabinet. Não sei se é o caso adotar os mesmos avisos, "classificação indicativa", etc. Se não precisa de aviso para ser delegado da China, de Cuba ou do Sudão em 2007, ou mesmo União Soviética nos comitês históricos, porque precisa de classificação nas ditaduras das antigas?

    3) Comportamento sujo: isso é realmente sujo e irritante. É até realista que tenha, e meio que impossível de coibir, mas em alguns casos simplesmente pega mal. Acho que tem uma sujeira justificável, como boa parte do que o Napozêra fez como Rússia no CS aí em Moscou. O resto é simplesmente chato. Dentre coisas sujas, estão invocar o juridiquês, recusar-se a aprovar duas resoluções porque "ia ficar incompleto", etc.

    A maior parte da sujeira não é nem para servir os interesses de política externa: é para ser chato mesmo.

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  4. Também sou absolutamente contra qualquer tipo de censura em termos de simulação de situações ou personagens considerados maus, crueis e inescrupulosos. Mas acredito que alguns tipos de comportamento são certamente inaceitaveis. Plágio, por exemplo, na minha opinião, deve ser combatido e abominado em qualquer meio acadêmico, inclusive, nos modelos.

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  5. eu já tinha comentado, mas o blogger vetou indiscriminadamente minha opinião.

    Dessa vez vou ser mais prático.

    Pra mim existem dois tipos de "maldades" em modelos.

    a) o primeiro tipo é o material. é aquele cara que tranca o debate, faz tudo ficar girando em círculos, desloca a atenção pra pontos irrelevantes, ou defende uma posição malvada mesmo.

    b) é o cara que rouba resolução, tranca delegado do lado de fora pra não votar, enfia artigos não-discutidos em um documento com vários signatários que não são consultados sobre as mudanças. Em síntese, é sacanagem.

    Existe uma diferença GRANDE entre o (a) e (b), e eu diria que o principal é pelo A ser evitável, o B não. No primeiro caso só precisa de um delegado experiente pra quebrar as pernas de um atravancador, bem como derrubar uma falácia qualquer. Mas nos egundo caso é deslealdade mesmo, é a verdadeira antiética que DEVE SER COMBATIDA.

    O problema não é ser malvado. Não tem problema nenhum, especialmente num ambiente muitas vezes relativista como modelos, onde vc precisa ser advogado do diabo. Mas seja mau jogando LIMPO.

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  6. Adicionalmente, só queria frisar que é imprescindível que nós sempre enfatizemos o caráter humanista do modelo. Você não pode advogar pelo genocídio, por exemplo. É um absurdo desmedido, é desumano. Se você realmente quer simular uma situação em que um delegado é submetido a uma posição onde ele pode cometer atrocidades, é bom que tenha uma boa justificativa pra argumentar no final de tudo: a gente brincou de fazer guerra, mas isso é ERRADO. Não podemos relativizarmos demais o negócio. Senão vamos chegar um ponto de começar a ver populações como percentagens, e acho que isso não é bom pra ninguém.

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  7. Bolshoe spasibo, Cedê!

    Discordando em parte do Pereira, eu penso que comitês malvados podem ensinar valores morais sim, através de exemplos negativos. Um delegado representando o Adolf Eichmann, que coordenava o sistema de transporte dos campos de concentração, vai ter que pesquisar profundamente o Holocausto. Isso certamente vai choca-lo, a menos que ele tenha algum disturbio mental ou uma posição politica absurdamente extremista.

    O velho chavão é verdadeiro: estudar o passado é o primeiro passo para não repeti-lo. Nenhum delegado do CSN1968 foi convencido pela simulação a defender a ditadura militar, foi?

    No maximo, acho que poderiamos - para os comitês particularmente malvados - publicar um pequeno disclaimer no site ou no guia de estudos, deixando claro que a organização não endossa de jeito nenhum as atrocidades que serão recriadas e explicando que o comitê tem um proposito educacional e humanista. Como o Artur disse agora.

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  8. O problema dos delegados safados é bem mais complicado. Concordo com tudo o que vocês disseram sobre isso: certos comportamentos são inevitáveis mas outros, como roubo e plágio, devem ser combatidos. Mas como?

    Em parte por causa da tendência irritantemente universal de achar que "vendido" é um elogio, a nova geração de modelistas tende a ser bem mais competitiva do que os velhos farfeludos que nos somos. Dai para a desonestidade abusada é um pulo. Como podemos coibir isso sem cair no moralismo? Acho que poucos diretores estão prontos para situações desse tipo.

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  9. Em modelos com prêmios, podemos fazer exemplos não dando prêmio para moleques que jogam sujo.

    Fui Diretor semana retrasada de um modelo interno e dei apenas menção nominal para uma delegação mal-educada, esclarecendo para eles e para todos a razão.

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  10. Napô, só pra esclarecer: eu não falei que comitês malvados não ensinam valores - eles muitas vezes ensinam melhor do que comitês "bonzinhos", mas o processo de aprendizado é diferente... Foi o que falei por psicologia reversa.

    Quanto ao CSN-1968: tivemos os dois extremos. Desde aqueles que compreenderam melhor a ditadura, aceitando melhor a ideologia da época, até aqueles que reconheceram o profundo aprendizado mas reafirmaram sua tendência subversiva e ficaram ainda mais contra a ditadura. De qualquer forma, eles puderam tirar suas próprias conclusões - que é pra mim o ápice do aprendizado em qualquer modelo, em qualquer comitê, e definitivamente não se aprende isso no colegial mastigadinho que 99% de nós temos.

    Artur: lembre-se que o delegado/diplomata tipo A é bem comum. Algumas conferências reais afundaram por conta de diplomatas assim, e eu duvido muito que esse tipo de conduta irá desaparecer tão cedo enquanto a política externa de um determinado país for a de que o assunto não deve ser discutido mesmo. Mas o tipo B tem que ser punido, porque é desonestidade mesmo. No final das contas, acredito ser o contrário: o tipo A não é evitável, mas o tipo B pode ser pelo menos repreendido e devidamente isolado para que suas desonestidades não afetem o curso material do debate.

    E por favor, vendido não é elogio! Acho que vou chamar pra SiEM alguém da nossa velha guarda para explicar o que é um vendido e como isso NÃO é elogio. :P

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  11. Isso poderia ser feito pelo Casarões em pessoa, o primeiro vendido de todos!

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  12. E ele está em São Paulo?

    HOW CONVENIENT!!!!!!

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  13. Mas antes da palestra, acho que cabe aqui um post sobre o conceito de vendido, não? :P

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  14. Vixe! Agora que eu e outras pessoas empolgamos com o formato Galvão Bueno, talvez seja o caso =)

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