quinta-feira, 12 de abril de 2007

Integração de MUNs, o Cálice Sagrado - Parte II

Eis que no final de 2006 aparece, como um OVNI vindo do espaço, uma nova cara no mundo modelístico nacional. Quer dizer, não tão nova assim (já tinha ligações com o MONU desde 2003 ou 2004, não sei ao certo). Trata-se de uma determinada organização não-governamental (nomes não serão mencionados por mim aqui) com uma idéia: apresentar um portal de modelos turbinado, com troca de contatos e patrocinadores, links, comissões atrás de comissões para deliberar assuntos comuns aos modelos, ligação direta com universidades... Basicamente, um mundo de coisas.

Not surprisingly, os olhos de muita gente brilharam. Se tudo aquilo fosse verdade, seria um imenso avanço em relação às conversas que tínhamos. Contatos, patrocinadores, comissões, oh my! (No projeto original tinha até viagem para Nova York!) Os traços mais importantes do projeto dizem respeito, além da questão do portal, a um nível de integração que nós modeleiros inicialmente jamais concebíamos ter. Contatos diretos com reitores, programa de TV universitária, comissões acadêmicas com professores...

Mas todos nós sabemos que quando a esmola é grande, o santo desconfia. Atualmente, este projeto é discutido Brasil afora, entre modelos paulistas, cariocas, mineiros, potiguares, gaúchos, piauienses, brasilienses, et alii. Há algum tempo não havia tanto bafafá entre os modelos brasileiros sobre um mesmo assunto.

O grande problema do projeto, e é um problema que se reflete em todos os demais pontos importantes dele, é uma questão de filosofia. Os idealizadores deste projeto, não sem alguma razão, vêem modelos e simulações como veículos propagadores de determinados ideais e valores ligados à ONU e ao multilateralismo em geral. Valores como cidadania, ética, diálogo, essas coisas. Todo o projeto gira em torno disso - da consolidação dessa "função social dos modelos" em torno da propagação de valores. (Eu odeio a expressão "função social" de qualquer coisa, mas se aplica neste caso.)

Neste ponto reside minha divergência quase irreconciliável com o projeto. Sou da opinião (radical e profundamente pessoal, não vinculada de forma alguma a qualquer modelo) de que modelos não são veículos de propagação de valores. Modelos e simulações são atividades acadêmicas. Como atividades acadêmicas, o maior objetivo não é fazer com que seus participantes saiam de lá verdadeiros cidadãos. Isso é impossível, e qualquer tentativa nesse sentido seria acompanhada de uma decepção. Essa decisão de se "tornar um cidadão" fica por cargo de cada um que participa. O que nós, como organizadores de modelos, "fornecemos" a quem participa de um evento como esse é um aprendizado neutro - uma forma de aprender com hands-on experience. Às vezes esse hands-on experience compreende assinar uma ordem para bombardear um país neutro em uma guerra - como eu fiz na última simulação que participei, semana passada -, ou promulgar a lei mais repressiva da história brasileira, ou dar a Tchecoslováquia de presente aos nazistas. Quem irá negar que há um aprendizado nisso?

Concomitantemente a isso, não é correto dizer que o nosso intuito em fazer uma simulação seja o de adotar oficialmente valores - o aprendizado está lá, e quem participa disso pode tirar as conclusões que bem entender. A partir da decisão de bombardear um país neutro, por exemplo, você pode tirar tanto a conclusão que era a única coisa sensata a se fazer (ou, em outras palavras, a lição aprendida foi a de que o poder e as circunstâncias ditam muita coisa, independentemente da sua moral); ou você pode achar que sempre poderia ter feito melhor, fazendo aquilo que seria "moralmente correto" (botem aspas nisso), ainda que com sacrifício da verossimilhança da simulação (lição aprendida: nós podemos fazer melhor, ainda que contra a corrente e sob o risco de causar danos maiores).

Repito: os valores não são o modelo que ensina. São os delegados que aprendem da forma que eles descobrirem que os convence. Se eu organizasse a simulação de um organismo X, tendo como resultados o delegado A aprendendo uma coisa e o delegado B aprendendo o completo oposto, considerar-me-ei realizado e minha missão cumprida, pois isso quer dizer que a experiência foi completa. Eu pude fornecer através da simulação os dois lados da questão e dar ao delegado o aprendizado mais completo possível: aquele no qual ele tem a opção de se convencer por aquilo que ele acha mais correto por tais e tais motivos. Qualquer outra coisa não seria educação - seria doutrinação. E nós estamos cansados de ouvir doutrinação desde o colegial. (Eu, pessoalmente, estou.)

Falando em termos práticos, a adoção de um conjunto de valores como o projeto propõe irá causar uma "filtragem" de determinadas simulações em detrimento de outras - por mais que a organização propondo o projeto diga que isso não vai acontecer, é um caminho natural quando há um posicionamento do organizador do sistema.

Imaginem que o projeto seja aprovado, e o portal passe a funcionar amanhã, explicando que a idéia por trás dele é divulgar aos quatro ventos os valores dos MUNs Brasil afora, que ajudam a formar cidadãos conscientes e tudo aquilo que já cansamos de ouvir. Um patrocinador desavisado, ouvindo falar de MUNs pela primeira vez, vê na lista de modelos colaboradores do portal dois modelos: um que simula apenas comitês e organismos da ONU, e outro que simula os comitês mais heterodoxos e malvados da modelândia. O que é mais fácil explicar pro patrocinador: que simular a ONU propaga os valores da ONU explicitados no portal, ou simular a Alemanha nazista propaga os valores da ONU explicitados no portal? Naturalmente, o MUN no sentido restrito do termo leva vantagem nisso. E o outro modelo, menos ortodoxo mas com o mesmo compromisso acadêmico, leva a pior. E com o esperado aumento de contato com patrocinadores, é apenas uma questão estatística até que as simulações da ONU levem vantagem sobre os predominantemente não-ONU.

Tal atitude vai totalmente contra o propósito de integração e expansão da cultura de MUNs no Brasil. A idéia é termos mais modelos, mais variedade, e não o contrário. E todo esse imbróglio parte de um "simples" erro de filosofia, de tratamento do fenômeno dos modelos.

Quais são as opções, então? Tratarei disso no próximo post.

6 comentários:

  1. Modelos que buscam ser facilitadores da formação social da cidadania e da compreensão de diferentes realidades através da vivência de culturas e identidades plurais e alternativas ...

    ... são bastante chatos !

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  2. Pereira,

    vc não mandou bombardear um país neutro...

    Eles já estavam sendo bombardeados de 1969, de forma secreta, mas estavam...

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  3. Que seja, é apenas uma figura argumentativa. :P

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  4. Em relação ao comentário da Mônica, devo dizer que todos os modelos seguem essa idéia, mas bater sempre nessa tecla explicitamente torna a idéia muito mala. Conceitos são bons, efetivos e incomodam menos(? questionável) quando internalizados e ñ quando passam a fazer parte abertamente do discurso.

    Concordo plenamente c/ o Pereira: modelos são atividades acadêmicas. Mas essa defesa dos princípios da ONU por parte da entidade que fez a proposta é algo muito óbvio, eles ñ tem como fugir disso. Contudo, é importante que as fundações da relação modelos & entidade possam garantir uma expressão de não discriminação de modelos heterodoxos ao padrão ONU.

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  5. Concordo plenamente contigo, e a minha experiência interminavel como modelista malvado e como planejador de comitês perversos me embasa sobre isso. Acredito que MUNs não têm nada de necessariamente moral. Eu não consigo lembrar a ultima vez em que representei um pais cuja politica externa coincidisse com minha opinião pessoal.

    Modelos podem transmitir valores, sim, mas podem enveredar por outros caminhos, vagando entre o estudo da Historia, a pratica da negociação e a diversão estilo RPG.

    Acho que modelos heterodoxos (sobretudo TEMAS e SiEM, embora a moda esteja se propagando, especialmente no RJ) são por natureza menos vendaveis para patrocinadores e apoiadores, embora sejam o sonho molhado dos melhores delegados. Esse nicho de "mercado" é solido, mas essencialmente restrito. Não adianta idealizar.

    A proposta da ONG em questão pode ser boa para tornar os MUNs brasileiros mais profissionais e estaveis. Mas isso não pode descambar em qualquer tipo de dependência.

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  6. eu tenho uma posição mais centrista (ou seria menos reacionária?): modelos podem tanto ser acadêmicos qto podem ser lição de moral. Depende do tipo de modelo que você quer. Mas se fosse escolher, eu diria ser mais prático um modelo voltado pro lado acadêmico, que ajuda ensinando finalísticamente, mostrando como as coisas acontecem after all.

    não acho que seja nosso dever criar hitlers ou ghandis, mas acho que temos obrigação de ajudar a fomentar o pensamento crítico, dando ao modeleiro ao menos a certeza que não vai estar comprando gato por lebre, bem como gandhi nunca teve esse bigodinho bizarro.

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